domingo, 20 de setembro de 2020

Uma pretendente a escritora confinada



Sou uma solitária confortável. Gosto do meu canto, de me cercar de livros, músicas e aplicativos de filmes e séries. Embora, com relação ao último da lista, se pesar o custo benefício, eu certamente estou pagando mensalidades à toa.
Quando nos foi exigido ficar em casa, mesmo eu, já habituada, demorei a entender a gravidade do que estávamos por viver. O perigo lá fora, nas pessoas que amamos e nos milhares de desconhecidos. O abismo social aprofundado. Lembrava do rapaz que vendia panos de chão e pratos em frente à padaria, da manicure. E agora? Entregava horas do meu dia aos noticiários televisivos e leituras de jornais. Depois da segunda crise de ansiedade, vi que precisava mudar meus hábitos e entregar-me em outros assuntos que sossegasse o coração e a alma. 
Essa divisão estranha. Alienar de tudo é egoísmo, se embebedar das dores do mundo é assinar uma sentença de morte. Dividir o tempo entre a compreensão da realidade e o bem-estar próprio. Para escrever, por exemplo, a mente atabalhoada para. Cansei de acordar angustiada, pensando nas pessoas que morreriam naquele dia e no medo de ficar doente. Mas tenho aprendido em fazer o que posso para ajudar a mim, as pessoas próximas e aquelas que mais sofrem. 
Estávamos sozinhos, eu e meu filho, dois péssimos cozinheiros e alheios aos trabalhos domésticos. Uma sensação de deserto, longe de todos. Tentávamos, fazíamos, assumimos aos poucos as tarefas e construímos nosso novo habitual. Até aprendi a cozinhar novas receitas, as mais simples, claro. E pela primeira vez me mantenho num grupo de ioga por mais de seis meses.
A maior parte do tempo dedico-me ao estudo. Os cursos online, novos amigos nas redes, pessoas distantes, conectadas por livros e quereres. Hoje sei mais sobre o racismo estrutural, sobre os diversos feminismos, assuntos que busco entender com mais profundidade. A necessidade aguda da arte me transportou para um lugar mais perto de artistas, como se eu os conhecesse intimamente. Participo de vaquinhas, acompanho processos de escrita de livros, incentivo-os com palavras de carinhos e com a escuta.
Criei no Instagram minha bolha perfeita. Sigo perfis de cuidados com animais, de boas notícias, de defesa ao meio ambiente, professores, amigos, escritores, editoras, quadrinistas, pintores, jornalistas, fotógrafos, cachorros, gatos, qualquer um que me traga momentos alegres. 
Já pensei estar infectada pelo vírus da covid-19 umas três vezes, com os sintomas diários da vida, dor no corpo, cansaço na vista, frio com o vento que passa forte. Sigo na dúvida e no medo. Já me arrisquei em encontrar alguns amigos, e fui à padaria. O rapaz que vende panos voltou. Contou-me das dificuldades, de como se manteve com o auxílio para sua família.
E agora, mais do que nunca, participo de causas que enternecem meu coração. Das grandes, quase impossíveis, às simples, belas, tão importantes quanto às primeiras. Como a última que me agarrei:  o dono de um vira-lata percebeu que nunca viu a foto do seu amigo no Instagram do pet shop que frequentam. Só expunha os de raça. Criamos um movimento, o Soho (nome do cachorro) agora tem mais de 10 mil seguidores, famoso por seu jeitinho despenteado. Respeitem nossos vira-latas!!!!


 




domingo, 30 de agosto de 2020

Bora ficar velho!


 

 

Hoje faço 60 anos. Pensar sobre a velhice é difícil. Não deveria. A gente quer viver muito, mas não quer ficar velho. A obviedade é enterrada e parece ser possível um outro caminho. Não há, e enquanto estivermos vivos, o melhor é conviver bem com o envelhecimento.

É engraçado, mas só agora penso nas incertezas do que virá, como se antes pudesse me assegurar que todo o planejado fosse realmente acontecer. A verdade é que envelhecer traz dúvidas e medos sobre o futuro. Mas certamente, não é sinônimo de se entrevar. Não é sobre realizar exercícios físicos e se alimentar bem, isso é bom pra todos os bichos, em qualquer idade.

Entendo que nos preparamos para o envelhecimento, quando prestamos mais atenção a nós mesmos. Quando deixamos que nossos filhos assumam suas responsabilidades, abandonamos controles fictícios, e principalmente continuamos produzindo e pensando. Não precisamos entregar nosso destino pra ninguém.

Apressar a decrepitude é mais do que comum entre as mulheres, as quais desistem de si, de fazer planos. É muito triste. Recolhem-se, certas que perderam toda a potência de existir. Os rótulos estão aí para serem derrubados. Minha mãe só se entregou quando viu que não dava mais. Gostava de comandar sua vida, de realizar suas escolhas. Lembro o quanto ela resistiu em parar de dirigir, lutava pela sua autonomia. E como seu exemplo me fortalece. Não abrirei mão do que quero.

Usei meu inferno astral para fazer alguns balanços. Resolvi me absolver das agruras em que me meti, sem penitências. Um bom começo é pensar em usar nossa experiência em vez de viver reclamando das perdas inevitáveis.

O viver para mim, só vale sem medo. Gosto de desafios, de continuar aprendendo. Quero rugas leves que mostrem diariamente minha história. Preciso da alegria das conversas, da embriaguez do vinho, do prazer de encher os olhos d’água com o beleza, de admirar o sublime.

Quero estar perto dos que amo, mudar, estudar sobre as pragas da nossa sociedade como o racismo, a homofobia, a misoginia, o machismo. Prestar atenção no mundo, lutar ao lado dos que querem melhorá-lo, torná-lo mais justo. Quero ler livros, ouvir músicas, ir ao cinema, teatro, cercar-me de arte, tão necessária e desprezada em nosso país.

Hoje não posso fazer uma grande celebração. A festa será um bolo em casa com poucos. E esse texto, que demorei a escrevê-lo, pois precisava dele o mais real possível. Nada de romantizar épocas e acontecimentos. Sem amores eternos, com vincos profundos na pele, na praia de biquíni com gorduras sobrando, com o corpo que às vezes dá pane, mas com muita alegria. Brindemos.

 

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Sigo o rumo



Criei esse blog quando fiz 50 anos. Sentia-me oprimida pela idade, insatisfeita com o trabalho, filhos adultos, dúvidas e incertezas. Queria escrever sobre novos caminhos e minha vontade de mudar. Para mim, fazer 50, era ultrapassar uma barreira do que tinha sido e precisava pensar o que seria dali pra frente, o que fazer com a velhice.

Escrevi sobre mim, envelhecimento, amigos, filhos, meus pais, feminismo, o que me vinha a cabeça. Fiz planos e sonhos, que agora, confrontados com a realidade dos quase 10 anos que já se passaram, parecem algo distante. Pois não os faço como ditadores, são apenas os primeiros traços de um desenho que terminarei vivendo. Caminhei levando vários tropeços e quedas. A menopausa, a morte dos meus pais, um câncer. A lembrança ainda me sufoca, procuro o ar. Outras vezes, o tempo ficou tão claro e aberto como a decisão de estudar literatura, ler e escrever. Nessas horas sinto o amor me rondando feito um carinho que alimenta.

Meu blog foi o começo de tudo. Decidi escrever quando viesse a vontade de dizer algo, de pensar coletivamente sobre um assunto que considerava importante. Optei por não definir regras nem horários. Cansada de obrigações, lembrava da disciplina na escola, notas para o bom comportamento, onde precisávamos nos adequar a padrões. Trabalho, diversão, tudo com hora pra chegar e pra sair. Regras, em sua maioria, castradoras da inspiração. Preferia a responsabilidade.

Mas aí, num curso com a escritora Marcia Tiburi, ela falou sobre o significado da verdadeira disciplina: “a do desejo”. O comprometimento com aquilo que queremos. A da frase do Renato Russo: “Disciplina é liberdade”. Tão lindo e profundo. Encontrei minha disciplina, a que tem regras definidas por mim. Uso-a em meus estudos, quero estendê-la a escrita de minhas crônicas.

O outro desafio é encontrar a alegria nesse deserto de solidões, abandonos e mortes. Tarefa árdua com uma doença à espreita, castigando mais os pobres e velhos. A rua, com a alma descoberta por João do Rio, se faz perigosa. Tristeza com o desgoverno que elegemos para nosso país. Homens bárbaros, racistas, homofóbicos, que abominam a cultura. Desprezam as mortes de brasileiros, como se nada significassem aos que ficam.

O cronista, talvez, deva olhar mais para dentro de si, enxergar as mínimas coisas que trazem alegrias ou tristezas no dia a dia. Animar-se com os que estão por perto. Descobrir novas paisagens nas antigas janelas. Falar sobre o novo habitual. Buscar inspiração nos livros, que nos transportam para outros tempos e lugares, nunca vistos ou existidos. Usar as palavras para amenizar a dor e a indignação, mas também para disseminar a alegria e esperança. Sigamos.