sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Um grande dia




Hoje acordei com vontade de chorar. Quem me conhece, bem sabe, que meu coração anda duro e calejado. Mas andar com esse povo, que respira literatura, faz dessas coisas.
Ao decidir cursar a pós-graduação em escrita literária, fui guiada pela alegria de ter sábados inteiramente dedicados à literatura. Não tinha menor ideia se seria capaz de produzir textos ou de acompanhar as matérias. Simplesmente, fui. Como num espaço sagrado, pisei com cuidado, conhecendo aos poucos, até onde conseguiria? O primeiro texto, uma carta a alguém falando sobre o que eu queria escrever, um projeto para um livro, mas já? Como assim?
            Lembrei de minha tia avó Zê, que amava livros do Pedro Nava e Jorge Luis Borges. Escondia seus escritos, confeccionava poemas:

“Vivi quantos longos tempos.... quantos?
Sinto distante por não lembrar.
Como contar nos meus dedos perros,
Pois que não os tenho tantos!...”
(Maria dos Prazeres Fortes)

            Minha tia foi, para mim, o maior exemplo de opressão e resistência. Não se dava a divertimentos, apaixonou-se por um homem, proibido por ser negro. Não casou, cuidava dos irmãos, criou minha mãe. Sua alegria estava nos livros. Eu a instigava, dizia que ela precisava pensar em si, mas se dizia cumpridora de um destino. Escondeu uma doença até tornar-se fatal, talvez cansada. Escrevi pra ela:

“...acredito em nossa comunicação, em herança de amor e desejos. Sinto que esse livro escreveremos juntas, vamos à forra pela nossa história. Como se ainda pudéssemos mudar tudo, você se casaria com quem se apaixonara, escreveria seus romances, poemas e me ensinaria sobre uma vida livre...”


Aos poucos, fui me tornando integrante de um grupo, que estava ali para sonhar alto, contar histórias, escrever. Os professores dividiam com a gente o amor pelos livros, apresentavam autores. Expandi meu universo de leituras e conheci escritores consagrados: Socorro Acioli, Marcelino Freire.
Escrevi contos, crônicas, ensaios, resenhas, textos sentidos, ia vivendo algo nunca pensado. Descobri em mim um repertório voltado para a vida das mulheres, sobre machismo, opressão, e principalmente, liberdade. Finalizei meu projeto, um livro com 16 crônicas de memoria, lembranças transformadas em experiências do feminino.
Os sábados de aula encerraram-se. Ainda sinto muita saudade, embora os tenha trocado pelos novos amigos que carreguei pra vida. Montamos grupos de estudos, whatsapp e carinho. E ainda mais, escrevemos um livro, nossa produção coletiva com 52 crônicas. Todos os tempos do universo, o titulo mais lindo e representativo da nossa união.
Hoje, dia 9 de agosto de 2019. Lançamento do livro com meu primeiro conto publicado. O choro é de alegria, gratidão e orgulho por estar aqui com meus colegas. De estar vivendo esse momento da minha vida com tanta entrega e verdade. De deixar-me atravessar pelas histórias e me inspirar em pessoas que guardo dentro de mim.

terça-feira, 19 de março de 2019

Crônica de uma despedida




Encontros continuam sendo um mistério pra mim. Olhamos para alguém e simpatizamos sem a menor explicação prévia. Intuitivos, espirituais e inexplicáveis. Foi assim meu primeiro encontro com ela, olhares seguidores, falantes e solícitos. Fui embora, cética e certa que a esqueceria na próxima esquina. Mas já estava tudo resolvido, quando voltei depois de uma semana, ela já me esperava.
Nossa vida juntas durou quase 12 anos, onde só coube amor, amizade e alegrias. Minha Luna. Típica leonina, cheirosa demais, adorava festas, gente em casa e banho de mar. Ciumenta, reclamava se não estivéssemos lhe dando a devida atenção. No carro, chorava pra ir no meu colo, mesmo estando na direção, e com a janela aberta para curtir o vento. Companheira de praia, estudos, músicas, dias tristes, de todos os dias. Por ela, não nos separaríamos por nada.
Só entendemos o amor dos animais depois de nos apaixonarmos por um. Eles têm o dom do amor absoluto, sem amarras, sem julgamentos, só entrega. Uma relação de prazer e carinho.
Um dia os cientistas ainda irão descobrir que a divisão entre homens e bichos como racionais e irracionais está totalmente incorreta. Nós somos os irracionais. Somos nós que matamos por ódio, somos nós que não aceitamos a cor, o credo, a vida do outro. Estamos sempre prontos a julgar, a apontar o dedo. Queremos armas para nos defendermos de nós mesmos. Guerras, fome, assistimos como a um filme.
Nélida Piñon, em seu “livro das horas”, narra sua decisão de deixar tudo determinado em seu testamento, caso morresse antes de seu pinscher, Gravetinho Piñon, “seu grande e eterno amor”, e justifica: “não estava preparada para esse amor”. Nunca estamos, por isso a despedida é tão dolorosa.
Gravetinho se foi antes dela, e minha Luna, antes de mim. Hoje sou só dor e saudade. O vazio da sua ausência é enorme. Difícil escrever sobre o que estou sentindo. Difícil entender os sentimentos de perda e angústia. Vontade de ficar só e chorar, de não pensar, de fugir para não sentir. Mas ela está dentro de mim com seu amor, sua lealdade e seu olhar, desde àquele primeiro dia. E tudo isso também me ensina a ir em frente.