sábado, 8 de maio de 2021

Estou viva




Notei que meu estoque de vinho estava a quase zero. Gosto do pinot noir, mais fraquinho, e comprei pela internet mesmo. Não sou nenhuma especialista, mas é preciso tê-los em casa, para qualquer ocasião. Aquecem, mesmo no calor.
A vida na pandemia não dá descanso, a tristeza é imposta diariamente. Mortos, milhares. Perdi amigos, meu irmão, ídolos da literatura, da música e da vida diária. E tudo vai pesando no corpo, sem ter onde despejar. Inventei escapadelas, um livro, uma janela, um quadro, amigos no computador. 
Mas viver a doença nos desloca para a expectativa da morte. Foram 10 dias numa cama de hospital, quando uma enfermeira olhou pra mim e disse, quanto menos se mexer melhor. Uma solidão que se precisa de alguém para tudo. O ar que circula, democrático, agora é raso. Sair da vida solta para o escuro parado. Para o medo do outro dia não chegar, de faltar o respiro. De não ter de onde vir. Da parede que veda. Da tampa que fecha. 
Aparelhos de alto fluxo de oxigênio, máscaras e remédios. Não existe a certeza dos resultados. As notícias chegam pelos trabalhadores que passam e ajudam. Falam que estamos bem, ali tiramos a sorte grande. Temos chance. Mesmo assim, a miséria nos ronda. O homem, que entra para lavar o quarto, conta para o amigo da avó internada num hospital público. Ele precisa passar lá diariamente pois, nem sempre, trocam a fralda dela. A médica venezuelana, que trabalha como cuidadora por qualquer ajuda. E quando a porta nos mostra o corredor, o desespero da correria, o inferno da angústia está ali do lado.
O medo é o companheiro mais leal desses dias. Toma a frente, atazana, manda. A gente sabe que é um vírus cruel sem padrão e regras próprias. Aí amanhece e ganhamos mais um ponto, mais um dia, mais ar. O dedo para medição do oxigênio é escolhido com carinho, um pontinho pode significar o início de um novo caminho, a esperança.
E é ela que foi me tirando do entorpecimento. Alguém precisa mais do que eu e as ajudas eletrônicas diminuem. Depois de uma semana, um banho no banheiro. A felicidade chega devagar, com os sinais de uma guerra vencida. 
Em casa, vou me despindo das marcas da dor no movimento do dia a dia. O ar me vem com calma e sem estardalhaços. Encontro e reinvento histórias engraçadas desses dias e conto aos amigos. Rimos juntos, falamos sobre a morte. Está tudo misturado. E o vinho chega na próxima semana.